O lado sombrio de Hiram Abiff

INTRODUÇÃO

O século 19 viu florescer uma enormidade de graus e sistemas, a maioria dos quais acabou não sobrevivendo. Seria possível passar décadas escrevendo sobre eles e a maioria traz apenas variações em cima dos mesmos temas. Leia-se: Mudam os personagens e os cenários, mas as lições são fundamentalmente as mesmas.

Nessa profusão de graus, contudo, um deles chama muito a atenção: O grau de Mestre Marcado. Pouco se sabe sobre esse grau, exceto pelo fato de que ele surgiu no século 18, supostamente na Escócia, chegando a ser praticado também nos EUA.

Esse grau fazia parte de um sistema de 44 graus, chamado de Early Grand Rite of Scotland, algo como “Grande Rito Primitivo da Escócia”, que não deve ser confundido com um homônimo posterior criado por Ambelain. Hoje extinto, alguns graus desse sistema sobrevivem na Allied Masonic Degrees (AMD) e entre os Knight Templar Priests (KTP). Não se sabe, contudo, se o grau é originário desse sistema, ou apenas foi a ele agregado.

O QUE TORNA O GRAU DIFERENTE?

Mas o que o diferencia dos demais graus é o fato de ser o único que traz o que chamo de lado sombrio de Hiram Abiff, apresentando-o como invejoso, negligente e responsável por homicídio culposo!

E, por se passar num período anterior à sua morte, acaba por trazer uma interpretação totalmente diferente para o grau 3. Para os maçons que receberam o grau, certamente serviria como um “twist” no estilo dos filmes hollywoodianos que os faria pensar que isso muda tudo. Abaixo, passo a narrar a lenda desse grau:

A LENDA DE HIRAM E CAVELUM

O grau se passa no começo das obras do Templo de Salomão. Nessa época, Hiram Abiff teria ido a Jerusalém para participar da construção do Templo de Salomão, achando que ele seria o Mestre-Construtor.

Ao chegar, contudo, deparou-se com o fato de que um parente do rei Salomão, denominado Cavelum, havia sido apontado para supervisionar a obra. Hiram Abiff teria sentido inveja de Cavelum e, indignado por não ter recebido a honraria que esperava e ter sido relegado a um papel de menor importância, teria ficado amargurado.

A amargura de Hiram teria atrapalhado na condução de seus trabalhos.

Certo dia, Hiram inspecionava os trabalhos sobre o portão norte do complexo do Templo. Totalmente absorvido por seus sentimentos, Hiram não percebeu que uma das pedras estava mal fixada. Hiram acabou deslocando essa pedra, que caiu justamente sobre Cavelum, matando-o.

Profundamente entristecidos pelo acidente, Hiram Abiff e o rei Salomão mandaram fechar o portão norte.

(O nome Cavelum não é bíblico. E há duas hipóteses etimológicas: Pode ser que venha do latim cavellum, que significa um pequeno buraco ou lugar oco, talvez aludindo à pedra posta sobre o portão norte. Ou pode ser que faça alguma alusão à cavalaria, já que vários autores e rituais se empenharam em fazer conexões entre a cavalaria e a lenda da construção do Templo.)

OBSERVAÇÕES

O leitor que conhece a lenda de Hiram Abiff imediatamente perceberá que o fechamento do portão norte teria impacto direto sobre a lenda do terceiro grau, que o autor do artigo evitará de comentar por zelo maçônico.

O objetivo central dessa lição era a ideia de que a falta de domínio sobre nossas paixões pode levar a consequências desastrosas, mesmo que essa não seja a nossa intenção.

Mas, mais do que isso, o grau pretendia fazer com que o recipiendário visse a lenda de Hiram como parte de um ciclo de causa e efeito, provocando-o a pensar se as injustiças sofridas não seriam decorrentes de ações anteriores, por nós desconhecidas.

PROBLEMAS DE ACEITAÇÃO

Todavia, para ensinar essas lições, o grau sacrificava a reputação de Hiram Abiff. O que nos leva ao comentário de Arthur Edward Waite:

“Por um lado, a lenda do Mestre Marcado o representa como em primeira instância subordinado a Cavelum, um dos parentes reais, que estava encarregado das operações antes da chegada daquele artista cuja genialidade e fidelidade encheram o mundo da Maçonaria com louvor para sempre. Essa é a anomalia na superfície; mas o que se segue, também na superfície, é pior, pois é uma mancha na reputação do Construtor. Ele é descrito como descontente e invejoso por causa de sua posição inferior; e sua negligência conduziu a uma fatalidade que tem quase um aspecto homicida.” (1911)

Teria sido esse sacrifício ousado demais, mesmo que a lição simbólica, abaixo da superfície, seja nobre?

Nos dias atuais, isso seria encarado com relativa naturalidade, pois nossa sociedade se acostumou com o fato de que até os super-heróis são às vezes reportados como tendo lados obscuros, sombrios e, por muitas vezes, recheados de esqueletos no armário.

Semelhantemente, nenhum maçom minimamente esclarecido nos dias de hoje acredita que a lenda de Hiram Abiff seja uma história literal.

Porém, se até hoje em dia as pessoas reagem mal quando não gostam de um dado desdobramento na história de um personagem de um filme ou série, quanto mais um personagem tão central para um sistema filosófico, como é o caso de Hiram Abiff na Maçonaria.

Assim sendo, não é improvável supor que a ousadia na lenda desse grau tenha causado aversão a muitos maçons no passado.

Teria sido essa amarga impressão um dos motivos pelos quais acabou deixando de ser praticado? Ou, talvez, a razão pela qual outros graus foram preservados por outros corpos e esse acabou sendo deixado de lado?

O último registro que se tem de qualquer coisa referente a esse grau ocorre numa alusão à sua lenda, feita num jornal neozelandês datado de 1937, o que dá a entender que o grau pode ter se espalhado por mais países.

Embora não seja mais praticado, pelo menos não pelos corpos maçônicos convencionais, o grau conserva ainda grande curiosidade por ter a distinção de ser singular na releitura que faz de um personagem tão importante para a Maçonaria.

Bibliografia

CAMPBELL, WM. The Stone of Destiny. The New Zealand Herald, Auckland, 28 jan. 1937, p. 13.

HUGHES, Paul T. Old Legends of Hiram Abiff. Tucson: Southern Arizona Research Lodge, 1982.

WAITE, Arthur E. A New Encyclopedia of Freemasonry, vol. II: Mark Masonry. Nova Iorque: Cosimo, 1921.

WAITE, Arthur E. The Secret Tradition in Freemasonry and an Analysis of the Inter-Relation Between the Craft and the High Grades, vol. I. Londres: Rebman Limited, 1911.

SMITH, M.A. Common Words with Curious Derivations: Cavil. Londres: Bel and Daldy, 1865.

ARCHITECT. Grand Council – Allied Masonic Degrees. Disponível em: <http://www.amdusa.org/degrees/ARC.html>. Acesso em: <29/12/2019>.

HISTORY. The Grand College of America – Holy Royal Arch Knight Templar Priests. Disponível em: <http://www.hraktp.org/history.html>. Acesso em: <29/12/2019>.

EGSR: The Early Grand Rite of Scotland. Disponível em: <http://ecossais.net/index.html>. Acesso em: <29/12/2019>.

Sobre o Autor

Luis Felipe Moura é M∴ M∴, membro da ARLS Conde de Grasse-Tilly 301 (Grande Oriente Paulista/COMAB). É bacharel em Letras (Inglês), mestre em Teologia e em Psicanálise, atualmente trabalha como psicanalista e professor de Bíblia Hebraica.

One thought on “O lado sombrio de Hiram Abiff

  • 19 de janeiro de 2020 em 9:11 PM
    Permalink

    Olá, o texto nós leva a pensar sobre a lenda do terceiro grau, se a maçonaria trabalha suas instruções dentro do dualismo, penso não ser estranho aceitarmos esse fato como lado sombrio do ser humano, podemos tirar grandes ensinamentos do dualismo.

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